quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O VENDEDOR DE PALAVRAS (RS)


Ode a leitura sem cair no mero didatismo

Foto: Vilmar Carvalho

Tive a grata surpresa de assistir ao espetáculo "O Vendedor de Palavras" do Grupo Mototóti de Porto Alegre, em sua apresentação de nº 172, dentro da programação da Feira do Livro de Montenegro. E não poderíamos ter no palco de uma feira de livro, espetáculo mais apropriado do que este. "O Vendedor de palavras" é uma ode ao incentivo a leitura, mas vai muito além disso. Vai além porque poderia ser apenas um espetáculo que tem a leitura como mote e se estruturasse em torno disso, mas não, alerta, provoca e estimula o incentivo a leitura, sem cair no mero didatismo.

Em cena a história de Milho, um amante dos livros que sonha em fazer com que as pessoas leiam por elas mesmas. Ele se dá conta de que há uma grande falta de palavras no mundo, e por isso as pessoas ficam repetindo as poucas que têm. E, se cada palavra equivale a um pensamento novo ele poderia se tornar um vendedor de palavras, e fazer com que as pessoas pensem mais e melhor.
Na trama também estão os avós de milho, Adam, um senhor inglês que vive em conflitos com Odete, a avó alemã. 


O que nos fica é a qualidade teatral alcançada pelos Mototóti, que num espetáculo breve consegue cativar  a nossa atenção.  O cenário a primeira vista é uma biblioteca que aos poucos vai se transformando em vários espaços como um pier, mesa, um trem, etc... Outro atrativo são os figurinos que estampam também idéias que remetem a leitura, permitindo a multiplicidade das personagens e não perdendo o caráter funcional, identificando os vários tipos que aparecem na cena: Adam, o avô inglês, Odete, a avó alemã, Milho e Espiga. Destaque também são os adereços utilizados na cena, que são ricos em detalhes, auxiliando assim a compreensão de todos, um exemplo de teatro popular. 
A montagem é recheada de teatralidade, se utilizando de diversos recursos que evidenciam a cena construída e transformada ali mesmo na cena, sendo que o espectador reconhece que aquilo que estamos presenciando  é teatro, mas ao mesmo tempo consegue embarcar e acreditar na história. Isso tudo se expressa na transformação do cenário, na musicalidade da cena como a sonoplastia do trem e até mesmo na ótima cena feita com a presença de um boneco que confere a esta montagem este universo mágico e poético.
A dupla de atores são o grande mérito de "O Vendedor de palavras" pois conseguem imprimir ritmo e beleza sem cair no pieguismo. Conseguem construir figuras de fácil assimilação popular centrados no trabalho de atores qualificados que são, já comprovados em outros trabalhos e aqui potencializados com o auxilio dos figurinos e máscaras, além da gestualidade ampla e limpa, aliados a um potente trabalho vocal, comprovado na apresentação da feira de Montenegro, onde começaram o espetáculo com microfones e devido a problemas técnicos os mesmos deixaram de funcionar, o que ao meu ver não atrapalhou em nada, pelo contrário, somente veio a somar, alertando que o trabalho de atores bem preparados resulta nisso, mesmo em situações não esperadas, conseguem se superar. As vezes, o casal Milho e Espiga me remete a outro casal famoso: Romeu e Julieta, pela forma poética que são construídas as personagens. Uma história de amor onde a paixão as palavras os remetem a outros mundos, e possibilitando uma reflexão acerca da necessidade da leitura em nossas vidas, mas também a necessidade e manutenção do amor em nossas relações.Destaco a cena do vendedor ambulante que é hilária e a cena do encontro e primeiro beijo do casal Milho e Espiga. 
Parabéns ao dramaturgo Rodrigo Monteiro que transpôs a crônica de Fabio Raynol para o teatro, tarefa quase sempre complicada, que é equacionar linguagens distintas, mas que neste caso resulta numa boa adaptação, num espetáculo curto e bem resolvido. 
E ainda temos a presença de outros profissionais que garantem a qualidade do trabalho como a direção da competente Arlete Cunha, além de Zoé Degani, Coca Serpa entre outros. 

Concepção e Atuação: Carlos Alexandre e Fernanda Beppler
Direção: Arlete Cunha
Dramaturgia: Rodrigo Monteiro
Trilha Sonora Original: Fernanda Beppler
Cenografia: O Grupo com a colaboração de Zoé Degani
Máscaras e Boneco - criação e confecção: Paulo Martins Fontes e Eduardo Custódio - Cia Gente Falante Teatro de Bonecos
Figurinos: Coca Serpa
Desing Gráfico: Carlos Alexandre
Produção e Realização: Grupo Mototóti


Conheça mais sobre o Mototóti em seu BLOG e no SITE
Publicado originalmente no Blog Válvula de Escape em 8 de outubro de 2011. 

O REI CEGO (RS)



Hoje a tarde, enfim fui conhecer o trabalho dos meus amigos do Teatro do Clã. O trabalho em questão é "O Rei Cego", este é o 1º trabalho do grupo que surpreende muito pela qualidade da produção. Discorrer sobre o acontecimento cênico é algo muito difícil, tratando-se da efemeridade do fato teatral, do instante que perpetua cada ato, gesto ou apresentação. Por isso é muito difícil tecer comentários sobre o fazer teatral, ainda mais quando não somos críticos "de verdade", ainda mais quando falamos do trabalho de colegas e amigos. Mas fica bem mais fácil quando o trabalho é bom e sei o que falar aqui será filtrado e talvez aproveitado pelos colegas. É o que acontece com o Clã. 
"O Rei Cego" é um espetáculo indicado a todas as idades e apropriado para ser apresentado em diversos locais, rua, palco, praça, galpão, enfim, onde o público estiver. A platéia de hoje era formada por crianças de escolas públicas da cidade e alguns transeuntes, o que dá credibilidade a produção. 
O primeiro fato a ser destacado é que este espetáculo foi contemplado com o FUMDESC, um fundo de apoio a cultura de Montenegro, e o que vemos é que os recursos foram muito bem empregados. O espetáculo é rico esteticamente, nos figurinos, cenários, adereços e maquiagem. A concepção e elaboração destes elementos foram precisas e criativas, todas a serviço da cena. Os figurinos são um destaque, pela beleza, simplicidade e utilização, ponto para a escolha do tom das cores, que perpassa todos os elementos da cena. O cenário é prático, belo e funcional, destacando a disposição das escadas e cubos que se transformam em outros espaços de acordo com o solicitado na cena. Os adereços transpõem o espectador a outros espaços como a utilização das malas que se transformam em cavalos (bela sacada!), ou as saias azul que são as ondas (bela sacada!), demostrando a criatividade e inventividade que o teatro de rua pede para chamar a atenção da platéia. E não podemos deixar de destacar o trabalho da assistente de produção Jenifer Berlitz que estava realmente assessorando o grupo.
Vamos a história: "O Rei Cego" é a história de um jovem príncipe que enfrenta inúmeros perigos para trazer a visão de seu pai de volta. Logo no início somos apresentado a trupe de atores que contarão esta narrativa através de atores/contadores de histórias. Este recurso do ator/narrador é muito bem utilizado na cena, onde acontece um revezamento entre os atores que ora contam, ora personificam os personagens da peça, criando assim um ritmo que não deixa a narrativa cair num marasmo, pelo contrário, o espetáculo é repleto de acrobacias, rupturas e surpresas que provocam o olhar do espectador a ficar atento ao que está acontecendo no centro da arena, ou no centro do semi-círculo, espaço que o grupo escolheu como palco para contar a sua história. 
Quanto a espacialidade, penso que o teatro de rua tem uma especificidade que somente a rua oferece: um espaço urbano que não é o projetado para a manifestação teatral, mas que é tomado e transformado em palco para alguns momentos de magia e ilusão. O Clã escolheu muito bem o seu palco na Estação da Cultura, embaixo das árvores e montou a sua semi-arena, bem equipada, delimitada e com seus lindos cenários, porém, penso que poderia explorar um pouco melhor a espacialidade contemplando um pouco mais os espectadores que não estão dispostos frontalmente. Explorar a lateralidade do espaço, abrindo um pouco mais a cena, jogando com os espectadores que não estão no centro da roda, descentralizando a ação que aqui não está no palco italiano, mas sim na rua, onde tem espectadores por todos os lados. Isso acontece no desenrolar do espetáculo, mas timidamente, podendo potencializar a relação com o espectador, criando assim, uma maior cumplicidade com o público, pois entre o elenco a cumplicidade já está tão latente, sugiro que esta cumplicidade seja compartilhada com a gente, mas quando digo dividir a cumplicidade com o público, não me refiro a piadas ou ações cômicas (que não é o caso deste espetáculo), mas sim através de um simples olhar de cumplicidade.
O elenco da montagem é coeso e cúmplice e funciona muito bem. Coeso porque é funcional: canta, dança, representa, narra, anda sobre perna-de-pau, faz acrobacia e contorcionismo e muito mais em cena. Tuti Kerber, Marcos Cardoso, João Pedro Decarli e Júlio Schuster dominam a cena com maestria e dão vida a nove personagens. A eficiência do elenco se dá pelo fato de que os atores conseguem transitar entre o representar e o narrar sem resvalar em interpretações grandiloquentes, optando pela simplicidade que funciona muito bem ao espetáculo. O elenco é parelho, mas João Pedro Decarli se sobressai um pouco dos demais e é destaque pela disponibilidade corporal, ideal para o teatro de rua, mas não somente por isso, e sim pela verdade e facilidade que transita entre seus personagens com graça e competência, é muito bom vê-lo em cena. Cardoso e Kerber tem estofo e experiência com a linguagem da rua, demostrando segurança e belas composições e Júlio é uma revelação como ator, com potencial e com um belo caminho a ser trilhado, que está muito bem em cena, devendo cuidar somente a respiração que demostra o cansaço e a triangulação com o espectador. 
Por fim, destaco o trabalho de direção de Cassiano Azeredo que ao  eu ver é uma revelação. Consegue transformar um conto popular em um espetáculo redondo, simples mas ousado, colocando o Teatro do Clã, já em seu primeiro trabalho, num dos grupos mais promissores do estado. Digo isso baseado no que vi, mas também porque conheço todo o empenho e dedicação deste jovem grupo que está em permanente transformação. O que fica é a profissionalização deste grupo que merece a nossa atenção. 
Cássio consegue amarrar os elementos estéticos e nos presentear com um espetáculo bonito e muito bem acabado. O que assistimos é um trabalho que foi pensado em todos os detalhes, da concepção a concretização, vemos a mão do diretor, das idéias como o "gigante" que se transforma ao nosso olhar, ao ator que some dentro de uma caixa, a chuva de prata que é linda e surpreendente, são atrativos que prendem a atenção do espectador e evidencia um diretor em grande desenvolvimento. Para encerrar esta minha odisseia sobre "O Rei Cego" destaco dois pontos que podem ser ajustados ao longo da temporada: 1º A transposição do conto para o teatro de rua, tem algo ali no texto, na dramaturgia, que não consegui captar e isso faz com que eu não embarque totalmente na história, no drama, diferente da encenação que com seus ricos recursos faz com que embarcamos por inteiro, de imediato, mas é a história mesmo, me perdi no enredo, talvez pela troca rápida de papéis, fiquei meio perdido, as vezes sem saber quem é quem e o que está fazendo? No final consigo esclarecer um pouco, mas durante a peça algumas questões ficaram pendentes, talvez porque o meu olhar ficou encantado com o visual que me desatentei ao enredo e precisarei assistir novamente para captar esta outra camada da encenação. E 2º é a musicalidade  da peça, que ao meu ver está ainda em desenvolvimento, conforme o Cássio me confidencia. Penso que a rua necessita de potência musical, e temos tudo ali, instrumentos musicais, atores treinados e disponíveis e um diretor atento a tudo, mas vejo que falta desabrochar esta musicalidade que já está presente ali, só falta deixar acontecer de forma menos formal e mais visceral. 
Contudo volto a afirmar que "O Rei Cego" é um trabalho digno de aplausos, um dos destaques da cena gaúcha, que ainda vai dar muito o que falar, pela profissionalização, criatividade e entrega do coletivo. Escrevam o que estou dizendo, este trabalho vai estar nas principais mostras de teatro do País.  

FICHA TÉCNICA
Direção: Cassiano Azeredo
Assistente de Produção, Divulgação e Mídia: Jenifer Berlitz
Elenco: 
Marcos Cardoso 
Júlio César Schuster 
Tuti Kerber 
João Pedro Decarli 
FIGURINOS: Raquel Cappelletto 
ADEREÇOS: Lúcia da Motta e grupo 
CRIAÇÃO E ORIENTAÇÃO DE MANIPULAÇÃO DE BONECOS: Alice Ribeiro e Rita Spier
ORIENTAÇÃO VISUAL: João Carlos Machado (Chico Machado) 
CENOGRAFIA: O grupo 
CONCEPÇÃO: Cassiano Azeredo e Marcos Cardoso
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Marca Produções Culturais 
DURAÇÃO:45 minutos 

Conheça o BLOG do Teatro do Clã. 
Publicado originalmente no BlogVálvula de Escape em  29 de setembro de 2011.


R e J SHAKESPEARE - JUVENTUDE INTERROMPIDA (RJ)


DRAMATURGIA X TEATRALIDADE

Ainda estou digerindo ao que assisti na semana passada no palco do Teatro Roberto Athayde Cardona em Montenegro. R&J Shakespeare - Juventude Interrompida. Gostaria de começar a analisar o espetáculo sob dois aspectos. Dramaturgia e Teatralidade.
Sob o ponto de vista dramatúrgico, diria que o texto do bardo é o principal atrativo, pois bem, diria, mas no caso desta montagem, existem várias possibilidades de dramaturgia(s): a dramaturgia do texto, que tem como interface a intertextualidade, mesclando a história doas amantes de Verona a história de quatro jovens alunos de uma rígida escola católica. O texto de Joe Calarco é uma recriação inventiva do texto de Shakespeare, que me faz relembrar a montagem que a Cia. dos Atores fez recriando outro texto de Shakespeare, "Hamlet", o espetáculo era "Ensaio.Hamlet", uma desconstrução e apropriação do texto do bardo inglês. Em Hamlet tínhamos uma recriação do texto, uma loucura com muitas possibilidades onde o texto do Shakespeare foi um pretexto para a criação de um espetáculo ousado, genial e criativo. Uma das montagens que eu mais gostei. Aqui, em "R&J..." Shakespeare triunfa, assim como toda a produção. O mote é o texto, mas as opções não se esgotam nele, pelo contrário, o texto é preenchido com ricas possibilidades cênicas, o "teatral" se instala na cena, de tal modo que o espectador embarca na proposta e se permite a compartilhar com aqueles alunos uma experiencia cheia de magia e rupturas. A teatralidade está em todos os detalhes da montagem, na proposta de desnudar a ilusão da cena, ou seja, sabemos que aquilo que estamos assistindo é teatro, são quatro alunos que estão representando os personagens de "Romeu e Julieta" e somos alertados a todo tempo desta condição meta-teatral, seja nas rupturas, nas transformações de um personagem para outro, nas inserções musicais ou até mesmo na utilização do belíssimo cenário. A teatralidade é muito latente, quando uma régua vira máscara, folhas de papel viram as flores do casamento, réguas são espadas e eu como espectador acredito, acredito e muito naquilo tudo, e se acredito é porque há VERDADE! E por falar em verdade, tem que se destacar o excelente elenco, os quatro atores são bárbaros e fazem milagre em cena. Mas não sei se serei injusto em destacar  o trabalho de Rodrigo Pandolfo, que faz o personagem de Julieta, além de outros personagens. O trabalho dele é impecável e intenso, alcançando uma verdade e coesão que seria difícil de algumas atrizes imprimir a esta personagem, pela força poética e entrega, sem exageros na interpretação. Todos os atores tem grandes momentos, mas Pandolfo rouba a cena. Tanto que o espetáculo foi quatro vezes aplaudido em cena aberta e ovacionado no final. O ator que faz a ama também tem grandes e divertidos momentos, assim como os demais. 
Mas não poderia encerrar sem parabenizar o diretor João Fonseca que soube explorar ao máximo todas as possibilidades da cena, uma encenação criativa, limpa, repleta de signos, mas, o mais significativo é que consegue colocar Shakespeare no seu devido lugar: nas graças do povo. Consegue manter um clima leve e potente na maior parte do espetáculo culminando na tragédia dos amantes de Verona, numa montagem eletrizante. Um dos melhores espetáculos dos últimos anos. 
Publicado originalmente no Blog Válvula de Escape em 27 de setembro de 2011.

AQUELES DOIS (MG)



Esvaziando as gavetas do preconceito
Minas Gerais tem se destacado em suas produções na área das artes cênicas. Prova disso é o Festival do Teatro Brasileiro - Cena Mineira que encerra suas apresentações neste final de semana. Da terra mineira já assisti a trabalhos do Grupo Galpão, referencia nacional de criatividade, ao Grupo Espanca!, e sua dramaturga Grace Passô, o qual pude assistir o maravilhoso “Amores Surdos”, as Cias de dança, Grupo Corpo, Quasar Cia de dança, e 1º ato, destacando também o Grupo Giramundo.
Desta vez tive o enorme prazer de conhecer o trabalho da Cia Luna Lunera, com seu espetáculo “Aqueles Dois” baseado no conto homônimo do gaúcho Caio Fernando Abreu. O espetáculo esteve em Porto Alegre no ano passado, mas não consegui assistir. A repercussão foi ótima e eis que agora através do SESC-rs o referido espetáculo foi apresentado em Montenegro.
São muitos os aspectos que fazem de “Aqueles Dois” um dos melhores espetáculos que já assisti. Começo então pela adaptação do conto de Caio Fernando Abreu para o teatro, pois este mesmo conto já foi adaptado para o cinema. O espetáculo é uma grande homenagem ao nosso grande poeta, pois Caio está lá, presente e vivo, seja através do seu texto, que está praticamente na integra, ou seja, através do referencial do autor, pois a escrita de Caio desvela diversas referencias de livros, cinema, artistas e personalidades que permeiam sua escrita. E tudo isso está em cena. Referencias que vai desde a atriz Audrey Hepburn a Carlos Gardel, de Jane Fonda, Van Gogh a Dalva de Oliveira e Almodovar. Estas referencias criam a base dos personagens do conto e a Cia Luna Lunera potencializa com maestria esse referencial e multiplica tudo isso em cena. A começar pelo espaço cenográfico que expõe uma séria de gavetas de variados tamanhos, onde são guardados os objetos de cena, e são muitos, tudo bem organizado, a exemplo de uma repartição pública, cenário da estória da peça. Dentro destas gavetas vemos telefones, maquinas de escrever, copos, garrafas, rolhas, canetas, papéis, livros, etc. O espaço limpo se transforma num caos, onde todos falam juntos, instaurando um atribulado dia de trabalho da rotina d’aqueles dois. Raul e Saul são novos funcionários numa repartição pública. A relação entre os dois inicia de forma burocrática, mas, no entanto acaba gerando incômodo nos demais colegas de profissão.
O tema da peça (ainda) é tabu, pois trata da relação entre dois homens, mas o modo como a escrita e a encenação é apresentada, se torna altamente poética e tocante, o que em outra situação poderia resvalar e se tornar um monte de clichês. A peça é engraçada (cena em que um dos personagens começa a cantar no microfone numa espécie de karaokê, aplaudida em cena aberta), é emocionante (cena da morte da mãe, quando um vestido é desengavetado) e extremamente teatralizada, pois dialoga muito com os códigos teatrais, criando a todo tempo a ilusão em que o espectador adentra no universo daqueles personagens e a quebra da mesma, pois o espetáculo trabalha o tempo todo com a dualidade, onde quatro atores representam durante todo o tempo os personagens “Raul” e ‘Saul”. Dentro desta teatralidade a Cia Luna Lunera usa e abusa com autoridade das convenções teatrais, através de seus atores-narradores, que comentam e interferem durante toda a peça. A construção do TEMPO também é muito valorizada, a exemplo de que a história é contada duas vezes de forma diferenciada. Durante o espetáculo cartas de Caio, são lidas ao microfone, interferindo e complementando a ação.
Outro destaque é a trilha musical, operada pelos próprios atores, dá todo o clima da peça e trás clássicos do cancioneiro popular brasileiro e latino. Desfilam músicas de Marisa Monte, Maria Bethânia, Nana Caymi, além da canção que permeia toda a peça “El dia que me quieras”. Percebi que em muitos momentos a platéia cantarolava baixinho as canções junto com a peça, inclusive eu, que adoro a seleção da trilha.
A iluminação é praticamente operada em cena pelos atores, que manipulam luminárias que são utilizadas de várias maneiras. Básica e essencial.
“Aqueles Dois” foi dirigido a cinco mãos e o elenco é primoroso.
Aqueles dois + aqueles outros dois = TRABALHO EXTRAORDINÁRIO, impecável onde o trabalho físico e vocal é evidente e ótimo.
A cena final onde os dois esvaziam suas gavetas e vão embora, com aquelas figuras de olhos vazados observando a despedida é muito tocante.
O espetáculo é lindo, sutil e necessário nestes tempos (ainda) de preconceitos.

Diego Ferreira
Grupo Válvula de Escape

Acesse o BLOG  da Cia Luna Lunera 
Publicado Originalmente no Blog Válvula de Escape em 15 de julho de 2011. 

EDWARD - O RETORNO (RS)



Nasce uma nova diretora!

Ontem, apesar do tempo feio, uma combinação de frio e chuva, fui ao teatro prestigiar o trabalho de Direção Teatral de Candida Santi Bazanella na Uergs em Montenegro. O clima chuvoso que perdurava do lado de fora do teatro tinha tudo a ver com a estética da peça "Edward - o retorno". O espetáculo é uma livre adaptação da obra "Crimes Delicados" de José Antônio de Souza e coloca em cena a absurda história do casal Hugo e Lila, colocando em cheque as relações de poder entre patrão versus empregado e uma reflexão sobre o modismo e suas consequências. É uma noite chuvosa na casa do casal. Uma onda de crimes assola a cidade, gerando mais uma moda: "matar". Lila entediada com sua pacata vida resolve seguir a moda, e começa agindo pelos animais, convencendo o marido a matar o seu empregado "Edward". E é justamente a partir daí que a peça tem o seu grande trunfo, pois nem tudo o que eles planejam sai conforme o esperado. A peça é recheada de situações absurdas num clima nonsense, lembrando a estética dos filmes de Tim Burton e dos filmes de horror, onde sua diretora conseguiu com maestria articular os diversos elementos da cena, como a direção dos atores, a concepção dos figurinos, cenários e elementos de cena, como as ótimas próteses de silicone (acho que é de silicone?), que representam as partes esquartejadas da vítima. Candida consegue uma encenação ágil, hermética, envolvente, engraçada, revelando uma sofisticação visual, dentro de uma poética própria.  Consegue também um ótimo resultado com as projeções e animações utilizadas na cena. Os atores estavam muito bem em cena, mérito também da diretora que conseguiu equalizar o seu elenco, onde os três conseguem se destacar em medidas iguais como acontece com a atriz Morgana Rodrigues, que cria um modo estilizado e melodramático para sua Lila, pontuando sempre seus gestos e ações físicas (como por exemplo, o gesto de arrumar o cabelo) criando assim uma atmosfera sarcástica e absurda, mas condizente com o universo de sua personagem. Rodrigo Azevedo consegue sustentar seu personagem através de sutilezas, que vai num crescendo, até chegar em ações amplas e melodramáticas, o que me chamou atenção no Rodrigo, foi o seu olhar, que em muitas situações falava muito mais que todo o seu corpo. Rodrigo Mello como Edward é surpreendente, pois vai desvelando seu personagem de acordo com as situações, se utilizando muito bem do seu potencial corporal. 
Este é um trabalho realizado em ambiente acadêmico, pois trata-se do resultado da Disciplina da Prática de Encenação Teatral do curso de teatro da Uergs, orientado pela Profª Jezebel de Carli, mas mesmo assim, não deixa de apresentar um resultado profissional, uma entrega de todos os envolvidos e espero que este trabalho possa ser apresentado outras vezes alcançando outros públicos fora da academia, Cândida e equipe, pensem nisso, siga trabalhando neste projeto, pois ele deve ser assistido por mais pessoas, pois vejo que teve um empenho muito grande e o resultado final foi muito feliz. Foi muito bom ver este trabalho da Cândida, já que eu acompanhei quase toda a sua trajetória dentro da Uergs e sei por quantas incertezas e dificuldades ela passou, mas aqui neste trabalho demostra que acertou o rumo e que futuramente poderia pensar em seguir nos trilhos da direção, sendo mais uma pupila da Jezebel. Eu sei que eu só elogiei, mas realmente gostei do trabalho. 
Parabéns!!!
PS: Meu filho Matheus, de cinco anos, adorou muito o trabalho, se divertiu bastante, coisa que as vezes ele não consegue fazer quando assiste trabalhos para a idade dele, portanto é um trabalho indicado para todas as idades.
Publicado originalmente no Blog Válvula de Escapeem  2 de Julho de 2011.

ÓPERA MONSTRA (RS)

Ontem fui conferir "Ópera Monstra" da Cia. Stravaganza de Porto Alegre. E como esta montagem é dirigida aos pequenos levei comigo o meu filhote Matheus, que ficou vidrado com o espetáculo. 
O musical da Cia. Staravaganza é um espetáculo repleto de acertos, pois tratando-se de um melodrama consegue criar um enredo simples, repleto de reviravoltas cheias de ritmo e interpretações calcadas na grandiloquência e no exagero, natural ao melodrama. São muitos os méritos da produção, pois além de ser um musical dirigido as crianças, além de ser um melodrama (que quando bem feito não é fácil de ser executado), ainda se utiliza de uma série de recursos tecnológicos como projeções impecáveis e precisas.  No melodrama as personagens recebem um tratamento moralista e maniqueísta - existe o grupo dos bons e dos maus, dos heróis e dos vilões – e o senso de justiça é exacerbado – o vício será punido e a virtude recompensada. E aqui não é diferente, existem os personagens bons e os maus, neste caso o mau é representado pela múmia Dom Skelector, que ao final será punido, mas também recompensado com o casamento com a Mama Lupina. Mesmo acontecendo este embate entre o bom e o mau, a figura do mau é representada de modo exagerado que acaba se tornando uma figura simpática que não chega a causar MEDO (ahhhhh!). A idéia era justamente a de desmitificar o medo, e conseguem e vão um pouco além, pois apresentam uma trama divertidíssima, cheia de idas e vindas, reviravoltas e revelações de mistérios. Parabéns ao Ricardo Severo, autor e diretor musical do espetáculo. 
A encenação prima pela qualidade em todos os aspectos, desde a concepção do cenário, aparentemente simples, uma espécie de um palco dentro do palco separado por uma tela de filó, onde são projetadas as animações, contando ainda com a entrada de uma mesa para a cena do banquete (linda a cena!) e de outros adereços, tudo muito bem utilizado e empregado a serviço da cena. Os figurinos são belíssimos, além de serem muito funcionais e auxiliar na imersão dos espectadores ao mundo cheio de ilusão e terror, juntando a caracterização principalmente dos personagens "Frank", com seus mega-sapatos mirabolantes e seu aspecto monstruoso, e a composição de "Kastorf", que é excelente. A caracterização da múmia é outro destaque, pois dava a impressão de que realmente estava em decomposição, num figurino com efeitos belos. 
Os atores formam um elenco coeso e brilhante, mas tenho que destacar o ator Rodrigo Mello (Franky), pelo virtuosismo (característica melodramática), e disponibilidade corporal empregada ao personagem, sua figura chama muito a atenção não somente pela a altura, mas pela desenvoltura empregada em cena. Outro destaque é o criado mudo (Kastorf), interpretado pelo ator Duda Cardoso, que ofusca nossos olhares com sua presença, (para que texto se temos "presença"?), uma presença recheada de intenções que ecoam através dos olhos e do corpo expressivo do ator, adorei a forma como o personagem transita em cena, tarefa difícil quando vivemos numa tradição da oralidade e verbalização. Cito estes dois, mas é lógico que não posso desmerecer os demais atores que estão ótimos em cena como o Lauro Ramalho que constrói uma múmia vilã extremamente engraçada e que por isso cativa aos espectadores, a cena em que a múmia dança interagindo com suas próprias imagens projetadas e um dos pontos altos da peça, adoro o trabalho do ator Lauro Ramalho, que consegue sempre trazer as suas criações boas doses de humor sem cair nos clichês, sinônimo de um profissional inteligente como é. E a presença das atrizes não desaponta em nenhum momento, Janaína Pelizon com sua potência grandiosa é fundamental para o sucesso deste trabalho, além de ser muito carismática e competente. Sofia Salvatori como "Condessa Valéria Dracul" é a que mais consegue presentificar o tom melodramático em cena, até pelo fato de ser a mocinha da trama, mas seus gestos são grandes e exagerados, assim como toda a sua performance, destacando sua linda e afinada voz. 
Por falar em voz, destaque para toda a trilha sonora que trabalha com bases  de guitarras, tornando as canções com uma levada pop, com melodias alegres e envolventes e dançantes. Saí do espetáculo com a música "A dança da Skelectite" na cabeça e na ponta da língua que minha esposa que adorou as músicas e adquiriu o CD com a trilha do espetáculo que é maravilhosa. Uma única ressalva ao espetáculo é a utilização de microfones e trilha sonora com os atores dublando as cantigas, lógico que entendo que é necessário pela amplitude vocal e adaptação ao grande espaço, mas no inicio me incomodou, mas ao final vi o quão necessário foi, e a participação da platéia durante a peça, que se fosse feita por um elenco despreparado poderia ser prejudicial, o que não é este caso.  
Adriane Mottola é quem dirigi este trabalho e a CIA STRAVAGANZA, com sucesso e dedicação incrível,  e que empregou nesta encenação uma linguagem inovadora, repleta de criatividade e tecnologia que sustenta o trabalho. Mottola demostra que é preciso inovar sempre, não se acomodar a estabilidade de uma cia. conhecida e propor sempre novidades, que é o que acontece com os trabalhos que já acompanhei do Stravaganza.
Parabéns a toda a ficha técnica que contribuiu para o sucesso do trabalho. E parabéns a Fundarte que ao comemorar seus 38 anos dando a população mais este presente.  
Agora fico aqui curtindo a deliciosa trilha sonora de "Ópera Monstra".
Publicado originalmente no Blog Válvula de Escape em  9 de junho de 2011.


A MEGERA DOMADA (RS)

A Megera Domada - Elenco de primeira em espetáculo de primeira

Na 3ª feira dia 7 de Junho a FUNDARTE – Fundação Municipal de Artes de Montenegro comemora 38 anos de intensa e dedicada jornada dedicada à formação e produção de arte e cultura em Montenegro e região. E para comemorar o seu aniversário presenteia a população com uma séria de espetáculos. Neste domingo trouxe a cidade “A Megera Domada” um espetáculo de teatro de rua, baseado na obra de Willian Shakespeare mesclando o jogo de máscaras fazendo uma referencia a Comédia Dell’Arte. O espetáculo é uma realização da UEBA e Produtos Notáveis de Caxias do Sul.
Se a Fundarte quis presentear os espectadores com este espetáculo, posso afirmar que conseguiu atingir o seu objetivo em cheio, oferecendo ao grande numero de espectadores um belo espetáculo.
Catarina é uma mulher bela e irascível, que não admite ser subjugada. Com sua língua ferina, ela afasta todos os pretendentes. O problema é que a doce Bianca - sua irmã - só poderá casar depois de Catarina. E agora? Quem conseguirá domar aquela megera? Só um louco, diriam os personagens desta deliciosa comédia de Shakespeare. E o nome dele é Petruccio, homem tão temperamental quanto a nossa destemida Catarina. Neste impagável duelo de forças, o bardo inglês nos brinda com uma história onde todos fazem tudo por amor. Mentem, trapaceiam, dominam e são dominados. A Megera Domada, uma de suas primeiras comédias, logo se tornou muito popular. Afinal, com muito humor e picardia, o mestre da dramaturgia defende os direitos da mulher e critica o machismo.  
A peça dirigida por Jessé Oliveira é uma união de duas linguagens: o jogo de máscaras, o jogo improvisacional da Comédia Dell’Arte, aliado a fusão dos textos de Shakespeare e Goldoni. O resultado foi um espetáculo diferenciado, afinadíssimo e criativo. Primeiramente gostaria de falar do espaço onde a peça é realizada, utiliza um espaço retangular demarcado por cordas, onde em cada ponta tem uma espécie de portais com degraus, que serve para demarcar as entradas e saídas dos personagens em cena. O espaço demarcado desta forma permite uma limpeza em cena, além de facilitar a marcação dos atores, pois em muitos espetáculos dirigidos a rua, acontece que os personagens surgem ou saem no meio do público, às vezes de modo violento, ou até mesmo deixando o espectador desconfortável, o que não ocorre em nenhum momento neste espetáculo. Os figurinos de Raquel Cappellettto é outro destaque desta montagem. Além de serem belos e ricos em detalhes são funcionais, caracterizando os personagens de “A megera domada” sem perder de vista as referencias a Comédia Dell’Arte, juntamente com a utilização das máscaras. A trilha sonora é pontual e muito bem executada, e um dos pontos altos da peça, se tratando da música é no encontro de Petrucchio e Catarina, quando é executada a canção “Se essa rua fosse minha”, num arranjo muito original que dá uma sustenção a cena apresentada, além de ser muito engraçada. Penso que como os atores estão muito afinados, talvez pudesse ser feito uma melhor utilização de músicas em cena, seria muito bem vinda à adesão de mais  canções do cancioneiro popular.       
Jessé conduz muito bem o elenco coeso deste espetáculo, adotando uma séria de convenções apropriadas à rua, além de utilizar muitas soluções teatrais que o espectador consegue ler e se divertir ao mesmo tempo, um dos exemplos é a utilização das cinco bonecas representando a personagem Bianca, boneca que ao passar do tempo vai crescendo de tamanho e trocando as suas características, ganhando personalidade e vivacidade em cena, de acordo com o seu manipulador, a utilização desta boneca diverte e ao mesmo tempo nos apresenta uma série de significados como a infância, a pureza, a feminilidade, a inocência, assim como nas últimas aparições como um mero objeto sexual. Outra solução adotada e que funciona muito bem é a caracterização dos dotes dos pretendentes de Bianca, que brinca com tamanhos de sacos de dinheiro relacionando ao tamanho de um falo, ou seja, um signo que tem um significado dúbio, que dá uma funcionalidade a peça sem ser vulgar, assim como muitas situações, como a utilização da campainha relacionada com um passarinho, ou seja, o falo do pai das meninas.
O elenco da apresentação em Montenegro marcou a estréia e substutição de dois dos atores da peça. Entra em cena Aline Zilli, Jonas Piccoli, Bruno Zilli, Fernando Gomes, Joe Guidini e na substituição a Juliana Demori e Márcio Ramos. Difícil destacar algum ator ou apontar os atores em substituição, pois todo elenco está muito bem em cena, entregue e disponível que não saberia destacar algum. Elenco de primeira em espetáculo de primeira, parabéns a todos e até mesmo a alguns imprevistos ocorridos durante a apresentação que só ajudou a visualizar o que faz um ator apaixonado se manter em cena mesmo com imprevistos. Por exemplo, em uma cena acontece um pequeno acidente que não chega a ser observado pelo público, mas como aconteceu em minha frente pude visualizar e acompanhar o seu desenrolar, em uma cena, um ator atinge seu colega com um violão acertando em sua testa, ao chegar à coxia, o ator percebe que está sangrando, rapidamente estanca o ferimento com papel higiênico e segue firme e forte em cena. Este fato demonstra que fazer teatro já é um desafio por si só, e fazer teatro na rua, não é para qualquer ator, pois lida com uma séria de intempéries, de transeuntes, do espaço aberto, do tempo de imprevistos, e o UEBA está de parabéns pela proposta apresentada neste espetáculo delicioso e leve de assistir. Conhecendo um pouco a trajetória de Jessé Oliveira, diria que esta união com o grupo de Caxias é um casamento perfeito, pois tem a sua frente uma equipe unida e de primeira. Parabéns a todos os envolvidos e vida longa a esta Megera Domada. Este trabalho comprova mais uma vez o profissionalismo e a excelência dos grupos do interior do estado que estão se desenvolvendo muito bem em suas produções assim como o pessoal do Timbre de Galo de Passo Fundo que vem trilhando uma trajetória super bonita. Espero logo, logo poder assisti-los novamente.
Conheça mais o trabalho do Grupo em:

Diego Ferreira é diretor do Grupo Válvula de Escape de Montenegro.
Publicado originalmente no Blog Válvula de Escape em 6 de junho de 2011.



DE-VIR (CE)


O melhor figurino de teatro é o corpo nu
Zé Celso

Devir é um conceito filosófico que qualifica a mudança constante, a perenidade de algo ou alguém. Movimento pelo qual as coisas se transformam. Ao assistir ao espetáculo “De-vir” da Cia Dita do Ceará dentro da programação do 6º Palco Giratório e fiquei bastante impressionado e transformado com o trabalho desta Cia. O trabalho estava cercado de tabus, até pelos meus colegas, que torceram o nariz para a proposta do trabalho. Em nossos debates pós-espetáculo tentei defender e intervir a favor da proposta, mas não obtive muito sucesso, mas mesmo assim, deixo aqui a minha impressão acerca do que assisti no Teatro Renascença. Em cena quatro performers pontuam as interferências do corpo com seu ambiente. Em cena quatro bailarinos nus propõem movimentos que se alteram em acelerações, pausas, repetições e variações. Três bailarinos e uma bailarina dançam no palco do teatro completamente despidos, usam somente meia-ponta. O coletivo se despe do figurino para revelar nos corpos dos performes a liberdade em se dançar, em provocar e em produzir um projeto estético repleto de significados e incrivelmente belo. Alguns enxergaram somente a nudez dos corpos, mas é preciso ir além para poder captar um trabalho sério, digno, ousado e pontuado por uma precisão de movimentos incríveis. O espetáculo era dividido por solos, duos, trios e todo o coletivo em cena. Grande parte do espetáculo era executado sem a presença de uma trilha sonora, mas a musicalidade estava impregnada nos corpos dos bailarinos e principalmente na respiração precisa e sonora produzida pelos corpos. Corpos que constroem, desconstroem e re-constroem imagens constantemente, com movimentos intensos, que iam sendo modelados de forma ralentada e era fragmentada por movimentos bruscos dando novos ares a coreografia. É preciso olhar para o espetáculo e conseguir enxergar que por trás dos corpos nus, existe um projeto repleto de referenciais que vai do trabalho de Lygia Clark a Roland Barthes.
Outra questão é que não podemos assistir a um espetáculo de dança com o mesmo olhar que lançamos quando assistimos a um espetáculo teatral. Vivemos no tempo do pós-dramático, onde existem linguagens muito hibridas e diluídas, teatro, dança, teatro-dança, dança-teatro. Mas as estruturas são diferentes. A concepção e execução são diferentes. E a apreciação também é diferente.
Fiquei com vontade de conhecer mais o trabalho da Cia Dita, que me provocou bastante.

Ficha técnica do espetáculo:
 Direção e coreografia: Fauller
Assistência de direção: Wilemara Barros
Bailarinos: Wilemara Barros, Henrique Castro, Marcelo Hortêncio, Fauller
Música: Ryoji Ikeda
Som: Wilenaina Barros
Luz: Fernando Peixoto, Operação: Fábio Oliveira
Fotografia: Alex Hermes
Produção: Ato Produção e Marketing Cultura

Publicado originalmente no Blog Válvula de Escape em 31 de maio de 2011.

SAVANA GLACIAL (RJ)

“A memória é uma ilha de edição”

A frase do poeta Waly Salomão vale não apenas para as lembranças daquilo que vivemos, mas também do que sonhamos. Utilizo-me do texto do grande poeta Salomão, para discorrer sobre “Savana Glacial”, espetáculo do Grupo Físico de Teatro que esteve na programação do 6º Palco Giratório em Porto Alegre e que circulou em algumas cidades do estado.
Savana Glacial se fragmenta como a mente da personagem Meg, que sofre de perda de memória recente, isolada em seu apartamento com o marido, o escritor Michel. A vizinha Agatha invade a privacidade do casal, criando um jogo de verdades e mentiras, ficção e realidade. A trama envolve ainda um quarto personagem, o motoqueiro  Nuno, uma espécie de elo com a realidade, escancarando uma obra aberta com referências à edição cinematográfica, promovendo fusões que desafiam as certezas e as incertezas do que se vê ou se vive.
O espetáculo propõe um jogo entre realidade(s) e ficção. Digo realidade(s), pois no momento em que a realidade se fragmenta, e não temos uma verdade absoluta, qualquer um dos personagens pode estar vivendo uma realidade, uma ilusão ou uma projeção da sua mente. A personagem Meg é quem tem uma mente fragmentada, mas existe uma linha muito tênue entre o que é real e o que é ficção em sua vida, e na vida dos personagens que a circundam, oscilando sempre o foco da trama. Quem está contando a verdade (se é que existem verdades)? Quem está propondo o jogo? O marido realmente mente, ou tudo faz parte de um jogo da vizinha? O que é verdade? O que é ficção? E qual é a fronteira dentro deste jogo?
Logo no inicio, Michel – o marido e escritor – nos informa: “Tudo é ficção”, “Tudo é falso”, “menos a dor, a dor é real”, o que se confirma através da estrutura do espetáculo, onde somos levados a percorrer um quebra-cabeça através da perspectiva de Meg, a esposa que recentemente sofrerá um acidente e está em recuperação. Depois disso, o que ocorre é pura vertigem, onde somos levados a entrar e sair deste jogo proposto, ir de um extremo ao outro, ocorrendo uma espécie de metateatro, colocando o teatro dentro do teatro, em situações, cenas, nos personagens (o escritor, por exemplo, que está escrevendo uma peça de teatro), no corte cinematográfico das cenas, na repetição, nas pausas e silêncios e na suspensão. Tudo dentro de uma estrutura espetacular fragmentada e teatralizada.   Refiro-me a teatralização, mas não querendo supor que a teatralização consista simplesmente em opor a realidade da ficção. Não se trata de opor o teatro ao não-teatro. Antes, de tudo é teatro. E “Savana Glacial” é um ótimo teatro e coloca em xeque está relação do que é real, do que é ficção, do que é teatro e principalmente expõe e demarca as fronteiras entre teatro/realidade/ficção mesmo que  não saibamos apontar onde está linha fronteiriça.
Quanto à encenação é louvável a utilização da fisicalidade em cena. Percebemos que a pesquisa do grupo é centrada no uso da ação física dentro do teatro contemporâneo, até pelo nome do grupo, mas a proposta do grupo passa longe do clichê, quando falamos na utilização de partituras em cena, tudo está dentro da proposta, ajustado e contextualizado. Ações e gestualidade na medida certa, onde não há espaço para atores que querem demonstrar a sua virtuose física. Pelo contrário, temos um espetáculo movido pela fisicalidade sofisticada, pela repetição e sutileza de ações físicas, mas absolutamente dentro de uma concepção, que eu credito ao diretor que soube explorar a espacialidade, a limpeza das marcas, a utilização de linhas geométricas, o ritmo e harmonia dos signos expostos em cena. Cito a cena da relação sexual do casal Meg e Michel. Extremamente bela e bruta; física e intensa, racional (na execução) e emocional cravando ali o tom do espetáculo, referente à fisicalidade que provoca tensão no espectador.   Ainda sobre o espaço cênico, como é bom ver a funcionalidade das luminárias e abajures, dando climas e demarcando espaços essenciais a trama, que somados a excelente trilha sonora de Jamba, que pontua, corta e interfere diretamente no espetáculo. A trilha é uma das responsáveis por me provocar esta linha de tensão juntamente com a estrutura caótica da peça.  Assistimos a um espetáculo que se utiliza de poucos recursos para provocar múltiplas possibilidades de leitura frente a trama.
Quanto aos atores, assistimos a um competente time, e falo time, pois o elenco joga junto e isto é maravilhoso de se ver em cena, quando não temos protagonistas e coadjuvantes, mas sim um elenco que te arrebata por inteiro. Teatro de grupo, onde o equilíbrio é evidente. Os quatro atores são ótimos: Andreza Bittencourt, Camila Gama, Diogo Carvalho e Renato Liveira. Diogo Cardoso que interpreta o motoqueiro Nuno, tem uma participação pequena, mas não menos importante, pois é um dos vetores da trama e digo que ele é ótimo, assim como Andreza (pela força em cena), Camila (pela presença) e Renato (pela precisão e naturalidade). Renato Carrera brilha com sua direção precisa e segura e Jô Bilac mais uma vez surpreende e afirma porque é o grande destaque da temporada, justamente em tempos em que o autor não tem seu lugar de destaque no teatro, Jô reaviva a tradição do autor. Viva os dramaturgos!
Acesse o blog do GRUPO FÍSICO DE TEATRO  

Publicado originalmente no Blog Válvula de Escape em  19 de maio de 2011.


REBÚ (RJ)

Cia Teatro Independente: Sangue novo no teatro brasileiro

Ontem assisti em Porto Alegre ao espetáculo "Rebú" com dramaturgia de Jô Bilac, com direção de Viniciús Arneiro com a Cia Teatro Independente do Rio de Janeiro. O grupo despontou com o espetáculo "Cachorro!", uma brincadeira com os arquétipos de Nelson Rodrigues e agora nos trás o seu segundo trabalho, o ótimo "Rebú". 
A trama do espetáculo se passa no século XIX, quando o jovem casal Matias e Bianca, que mora numa casa isolada em meio a um descampado, se prepara para receber a visita da irmã adoentada do chefe da casa (Vladine), e uma espécie de filho dela. A hiperbólica e exigida cautela com a saúde da hóspede e a presença do seu acompanhante fazem com que Bianca, aos poucos, crie uma rivalidade com ambos, levando o embate às últimas conseqüências. 
O sucesso do espetáculo dá-se por vários fatores e a união destes resulta nesta delicia que é assisti-lo. Destaco a primazia e limpeza da dramaturgia de Jô Bilac, onde uma história folhetinesca e melodramática é apresentada, um texto limpo, sem exagero, sintético e com o que eu considero o mais importante, que é a amarração do drama, dando conta de todos os elementos dramáticos expostos, colocando em cena um personagem simbólico, um bode, personificado pelo ator gaúcho Diego Becker, sendo que este elemento dramático é quem vai desencadear sucessivos embates e levar a um desfecho incrível. Achei uma grande sacada dentro do enredo e muito bem resolvido. Ponto para o Jô Bilac que após o espetáculo revelou algumas de suas influencias que vão desde Nelson Rodrigues até Pedro Almodovar, que resultou numa trama bem feita, sofisticada e repleta de reviravoltas como acontece no melodrama. 
Outro destaque é a direção do espetáculo, pois fiquei imaginando este texto sendo encenado por outro diretor, procurei fazer este exercício e não consegui imaginar, pois o mérito não é somente do dramaturgo, mas sim de toda a equipe, e grande parte deste mérito pode ser conferida ao diretor que soube orquestrar muito bem o seu elenco, que é maravilhoso, sem exceções, os quatro atores de uma capacidade imensa de transformar o que poderia vir a ser um festival de caricaturas, em interpretações verdadeiras e viscerais. O ritmo vertiginoso das cenas, a velocidade do texto falado, as marcações precisas, os cortes na iluminação me remetia a cortes cinematográficos e tudo isso calcado no trabalho do ator, pois em cena há somente o essencial para se contar uma boa história, uma iluminação básica, mas muito bem ajustada, um cenário básico, pouca utilização de trilha sonora e ... TRABALHO DE ATOR e DIREÇÃO! É isso, como se fosse fácil, mas o mérito é esse, um elenco primoroso, preciso e muito bem dirigido conseguem dar conta dos dilemas propostos pelo autor. E a trama proposta avança no fluxo dos diálogos. Outro dado interessante é que não existe em cena a manipulação de objetos, com exceção de um punhal, o resto é ator, trabalho físico, sem bengalas, sem a necessidade de se esconder atrás de objetos ou adereços. Parabéns a Cia Teatro Independente, um jovem grupo que trabalha seriamente e está injetando novo ânimo ao teatro nacional e parabéns ao Sesc por nos proporcionar conhecer trabalhos como este. Uma noite inesquecível. 
Publicado originalmente no Blog Válvula de Escape no dia  13 de maio de 2011.